Após passar um tempo no hospital iniciou um tratamento ambulatorial de radioterapia e quimioterapia. Seriam 24 aplicações e eu me dispus a acompanha-la, caso tivesse alguma resposta biológica que a impedisse de dirigir. Bobagem, eu queria mesmo é estar com ela nesses momentos. Como se não bastassem as notícias, o fantasma do desconhecido também nos assombrava o tempo inteiro. Neste ponto, a situação já era um problema nosso, compartilhado, dividido, embora as coisas estivessem acontecendo somente no corpo dela eu sabia que as pressões psicológicas seriam ofertadas democraticamente para quem a estivesse acompanhando. Diante do quadro, imaginava a convivência com pessoas doentes com grandes chances de encontrar pacientes terminais. Inevitável refletir sobre tudo na vida diante desta experiência e não tinha boas expectativas sobre o que teria de enfrentar ao lado de minha mãe. De imediato tinha que administrar as mudanças de rotina da minha vida pessoal, que ocasionou a mudança de rotina de muitas pessoas. A Dona Inês também tinha que organizar sua vida para a mudança de rotina, que afetou muitas pessoas, em especial meu irmão, Sérgio Heráclito, que mora com ela. O dia começaria mais cedo, terminaria mais tarde e ficaria mais curto. Teria que compreender mais sobre radioterapia, física, biologia molecular, química, morfologia humana para ter alguma chance de compreender o que está ocorrendo. Estava preparado para enfrentar as entediantes filas e a se adequar às agendas dos médicos especialistas que acompanham o tratamento e atendem em vários turnos distintos.
Todos perguntam como está o tratamento, porém até então não tínhamos muito a dizer além do pânico. Isso diminuiu um pouco e é sobre isso que venho falar. Penso que todas as pessoas estão sujeitas a passar por situações semelhantes. Nosso lado estóico nos diz que começamos a morrer quando nascemos.
Tudo que foi dito acima parece muito óbvio, porém se tornaram questões diminutas diante da força transformadora e criadora de possibilidades presente nos indivíduos que dialogam e interagem. Isso não estava previsto e só pude perceber vivendo as experiências. Desta mistura brotaram milagres que nasceram da relação das pessoas. Estamos concluindo a primeira etapa da radioterapia e quimioterapia. Tudo indica que no dia 23 de maio finalizaremos o tratamento intensivo e passaremos para uma sequência de revisões que imprimem outra rotina, menos intensa, baseada em marcação, realização, retirada e avaliação de exames . Os primeiros passos desta caminhada serviram para nos lembrar que o medo e o desconhecimento caminham juntos e são parceiros fortes que precisam um do outro para sobreviver. O medo é parte da nossa natureza e está intimamente ligado a preservação da nossa vida, porém sua intensidade pode ser um problema. Na medida em que tomamos ciência e compreendemos os processos do enfrentamento à doença, o medo diminui.
Quando falo em milagre, me refiro ao dia 15 de maio, terça-feira. Naquele dia despertei eufórico, passei o café e logo minha mãe encostou o carro no estacionamento. Desci e a encontrei com um sorriso indescritível. Estávamos muito felizes porque íamos para a radioterapia. Era o último dia de Marli, que enfrentara dificuldades maiores do que a nossa por morar em Taquara. Minha mãe levou uma garrafa de café com leite. Ela reclamou que estávamos dez minutos fora do prazo combinado na noite anterior. Eu disse que tínhamos tempo, mas ela queria chegar mais cedo para encontrar os amigos. Quer milagre maior do que acordar mais cedo para ficar mais tempo na fila? Irracional, mas era isso que estava acontecendo.
Marli ganhou apoio do Supermercado Volte Sempre, de Taquara, que preparou bolo e salgados. Seu esposo, José Luiz, demonstra um empenho comovente no tratamento de Marli. Teresinha, de Dois Irmãos, acompanha seu marido, José Lauro, em jornadas exaustivas que lhe ocupam o dia inteiro. Ainda assim, aquela mulher de sorriso largo e generoso encontrou energia para preparar uma deliciosa cuca para ser compartilhada no café da manhã da radioterapia. Esses gestos nos comovem, nos invadem, nos arranca daquele mundinho de cinco metros do entorno para um olhar mais amplo sobre a própria existência. Entre eles Zenaide, de Três Coroas, uma companheira petista que olho e lembro do rosto, mas de onde? Outro dia ela me olhou fixamente e disse que me conhecia, mas de onde? Se não nos conhecemos então tá valendo aquela tese de que o petismo pode deixar as pessoas meio parecidas, mas duvido, pois ainda tenho esperança de lembrar de onde a conheço. Seu Otávio, do Alto de Caraá veio com sua esposa Celoir que preparou rosquetes deliciosas. Nesse dia descobri que Catarina mora em Parobé, pois conversamos enquanto ela comia o bolo. As brincadeiras da Dona Inês com o Alfredo naquele dia passaram da conta, deixando a Teresinha sem fôlego de tanto rir. Que arrancou as medicinais gargalhadas da Estela, que acompanha seu pai Anibal de Sapiranga. Por um momento, naquela manhã, nos olhamos e recitamos juntos “lá dentro é a rádio, aqui na recepção é a terapia”. Comemoramos a vitória de Marli, de seu esposo José Luiz, de toda sua família e de todos nós, que lembramos naquele momento a alegria de viver. Jamais imaginaria viver isso na sala de espera da radioterapia.
Sobre o tratamento, podemos dizer que a Dona Inês teve uma boa resposta biológica até o momento. Ela continua no mesmo pique de sempre, eventualmente parecendo que tem um parafuso a menos, mas se você olha mais de perto percebe que tem alguns a mais. Comunicativa, extrovertida, piadista, alegre e contagiante ela no dá uma lição de perseverança e de vida. Quero fazer um agradecimento especial para todas as pessoas que me cobraram notícias e me motivaram a escrever esses breves relatos.
Bom, Charles em primeiro quero mandar forças prá tua mãe e prá toda a família, pois é bem isto que você escreveu:ficamos felizes por estar nesta gincana da vida e indo em frente. É uma doideira geral, tanta adrenalina que ficamos energizados em 220.000 volts! Imagina que recentemente na minha família uma querida tia, lá de Santiago do Boqueirão, se veio prá Esteio, pois só assim poderia passar por todo este processo de radioterapia e quimioterapia.Bom, até aí tudo normal, se não fosse a particularidade da tia em tratamento estar com seus 84 anos e a tia que lhe acolheu e apoiou era a sua irmã mais velha, com seus 86 anos! Deve estar se perguntando:mas bah, duas velhas senhoras, pobrezinhas,como conseguiram se ajudar, se apoiar? Charles, nestas horas Deus nos dá a força e a fé necessária para removermos montanhas. E hoje minhas duas e queridas tias velhas, ou velhas tias, estão muito bem, obrigada. Com uma força, uma disposição de dar inveja, indo as duas em direção aos 100 anos. Conhecendo tua mãe, como todo Esteio a conhece, só posso te dizer que logo, logo, tu serás surpreendido mais uma vez pela força e pela garra da Dona Inês! Abraço forte para vocês.
ResponderExcluirfiquei muito emocionado com seu depoimento Aline. Te respondo aos soluços pela sintonia dos relatos, quando fica claro e transparente valores que se tornam difusos no cotidiano, a exemplo daquele expresso no ditado "tu vale o que és, não o que tens". Essa regra impacta quando visitamos a ideia dos limites da vida. A Inês é muito mais do que tem. E tem muito pouco do que poderia ter pelo que é. Acho que é uma síntese. Uma oportunidade que eu estou tendo para compreender um pouquinho mais sobre a vida. Por isso fiquei emocionado, pois pude sentir em tuas palavras que conhece de perto essa lição.
ExcluirAmigo Charles... desejo uma recuperação rápida para a companheira Inês. Um abraço.
ResponderExcluirOi primo! Estamos juntos nessa luta! Amo demais a Tia Inês e sei que com toda essa garra e alto astral ela vai sair dessa, com certeza! Estou torcendo muito por ela, e espero que meu pai também tenha a mesma sorte, já que está com o mesmo problema. Compartilho do teu sentimento de filho nessa hora difícil, mas que tem muito a nos ensinar! Forte abraço!
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