quarta-feira, 30 de maio de 2012

No contar dos dias para ver e ouvir o sino tocar...

Dia 21 de maio comemoramos a conclusão do tratamento de Anibal e então, pela primeira vez, participei e registrei um ritual que até então existia somente em nossa imaginação. Cabe destacar que essa imaginação foi construída a partir de informações dispersas, oriundas de relatos de pessoas que diziam ter ouvido um sino tocar, que tinha alguns dizeres acerca de um compromisso que te acompanharia depois do tratamento. Tudo ficou mais instigante quando um senhor de Farroupilha, aliás, de Bento Gonçalves recebeu o diploma de conclusão do tratamento, porém nada de sinos a badalar. Surgiu então uma versão transversal anônima que afirmava a inexistência do sino. Como para a maioria das pessoas o sino só existia na imaginação, seria o mesmo que dizer que tal “realidade” deveria permanecer eternamente no campo do mundo sublimado e criado somente no interior da nossa alma. A radioterapia é um tratamento relativamente longo e promove um período de convivência entre pessoas que geralmente não se conhecem e disso nasce algo completamente inesperado.

Nos diálogos que brotavam na sala de recepção, montávamos coletivamente um ambiente imaginário sobre as coisas misturando tudo. A Dona Inês, geralmente, dá a temperatura no ambiente, outros se encarregam de fluidificar as essências individuais criando algo absolutamente novo, singular, saudável, em que compartilhamos um momento importante de nossas vidas. Seja para quem esteja fazendo o tratamento, ou para quem o acompanha. Todos participam da experiência da sala de recepção e estão expostos a isso.

Ali sabemos que o sino é um símbolo de vitória e compromisso. Uma vitória do iluminismo presente na ciência da humanidade. Nós somos a vitória presente que humaniza e dá calor à frieza da lógica que nos cura. Com todo o romantismo aparente, temos ciência de que é a ciência responsável pela invenção do tratamento. Mas o que devemos valorizar acima de tudo é o desejo pela vida, que motiva iluministas a fazerem máquinas que curam o corpo.

Cada passo dado nesta caminhada nos humaniza como um todo e nos apresenta valorosos pontos de vista absolutamente distintos daqueles que temos viciosamente em nosso cotidiano. Anibal é um homem que aprendi a admirar. Nossas conversas sempre encontravam as chances de se expandir a horizontes infinitos, tal versatilidade e talento deste pai de família. Um construtor, conhecedor dos processos biológicos, das possibilidades químicas, das razões da física que lhe assegura uma lucidez impressionante. Tenho a impressão de que Anibal é capaz de construir qualquer coisa, de plantar, criar, cuidar e resolver questões de grande complexidade se lhe der as ferramentas. Isso está explícito em seus olhos, que somam um carisma indescritível, que só é possível existir em pessoas amáveis possuidoras de uma inteligência emocional capaz de sublimar qualquer obstáculo na vida. Ele deixa claro em seu olhar que o momento compartilhado, com todas suas implicações, é só mais um obstáculo para superar.

Era a vez dele tocar o sino e dizer as palavras mágicas. Protagonista dos comentários em torno dos rituais, Anibal tornava tudo mais intenso e sua realização mareou de emoção os olhos de seus amigos. Todos choravam reativamente pelo transbordar de sentimentos. As emoções simplesmente não cabiam naquele tempo e espaço. Foi algo impressionante. Com a autorização dos profissionais de saúde, adentramos na sala de tratamento e nos reunimos em torno do sino. Anibal foi convidado pela coordenadora do setor a ler os dizeres da placa para todos, mas principalmente para si mesmo. Depois sua tarefa passava a ser tocar por três vezes consecutivas o sino. Nesse tempo Estela, preparava uma viola (instrumento de orquestra) para tocar para o pai. A violista entonou o hino de vitória após o narrar das palavras de compromisso.

“Quando o seu tratamento terminar


Toque, 3 vezes este sino....


Com orgulho


Para a todos anunciar


Que é outro o seu destino


E o caminho agora, é se curar!”

O sino tocou por três vezes e transcendemos para um mundo compartilhado, verdadeiro, real que construímos juntos em nossas expectativas cotidianas, que sedimentaram do decantar do silêncio da existência, na turva atmosfera de nossos sonhos. Difícil entender a mistura, mas fácil de sentir cada pessoa como parte de si, já que somos todos, um só. Embora saibamos disso cada um a sua maneira, esses momentos nos levam a visitar esses pensamentos que nos enchem de vida e nos tornam fortes para enfrentar adversidades e sensíveis à experiência do outro, como uma experiência sua, como de fato é quando permitimos que seja.

Momentos de vida coletiva nos enchem de riquezas. Nos conectamos existencialmente e partilhamos nossas infinitas bibliotecas de saberes. Sozinhos somos como um computador desconectado da internet. Temos todo o potencial, mas nada se compara a esse potencial combinado com o uso da rede. As possibilidades são infinitas. Caso seja possível compreender algum sentido nessas palavras, quais seriam os sentidos que sustentariam a existência atomizada majoritariamente exercida pelas pessoas nos centros urbanos?

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