Carta
ao camarada Gustavo Souza
Camarada
Gustavo, em conversa recente iniciamos um trabalho de cooperação para a
realização de um projeto. Para tanto, neste início de caminhada, quero
compartilhar algumas motivações que são possíveis de serem compreendidas nesta
narrativa que emana valores que motivam e justificam a ação que nos propomos no
projeto “A Vida Na Parede”. Combinamos
para organizar a agenda após o ano novo. Antes disso, havia me comprometido de
compartilhar essa narrativa. Eu penso em trabalhar com ela, pois ela edifica o
ambiente para você dar continuidade a partir da experiência deste cultivo,
desta cultura. Da cultura que cultiva a vida.
Um
fraterno abraço,
30
de dezembro, de 2020
Algumas razões
Ao
refletir sobre algumas inquietações e suas motivações lembrei que a questão já
me intrigava quando tinha 11 ou 12 anos, quando procurava compreender as
motivações de fazer uma horta. Eu vendia pão para ajudar no orçamento
doméstico. Minha mãe havia ficado doente e as coisas complicaram. Eu morava na
Feitoria, em São Leopoldo, quando tive contato com a rua vendendo pães e
artesanatos em cerâmica. A comunidade nas periferias ainda trazem traços da
vida rural, anterior ao convívio urbano, com hábitos de plantio e cultivo de
hortas, de tomar banho em arroios, de pescar no rio e vasculhar o mundo em
busca de árvores frutíferas. Embora envolto na atividade profissional, eu
sempre estava atento procurando uma oportunidade de me divertir, experimentar e
conhecer tudo para aprender muito rápido como sobreviver. As pessoas tinham
suas estratégias e demonstravam total comprometimento em realizar essas
tarefas, muitas vezes trabalhosas, de organizar o plantio e cultivo de uma
horta. Eu observava aquele trabalho todo para colher pouca coisa, que na minha
opinião, sequer eram necessárias à subsistência. Ao observar o valor dos
vegetais na feira eu me convencia que é mais fácil comprar.
No
entanto, eu ficava perturbado em não compreender as motivações que faziam
aquelas pessoas tomarem outra decisão. Desconhecer esses motivos e argumentos
tornou minha vida insuportável. Então venci a timidez de piá e fui falar com
uma senhora que tinha uma horta, pois ela morava perto da minha casa, me
conhecia e me dava café quando eu levava os pães que ela amava. A dona
Terezinha tinha um sobrenome que parecia reunir todas as consoantes de forma
aleatória sem nenhuma vogal, eventualmente repetindo algumas, tipo T, N e Z.
Algo impronunciável, mas acho que era descendente de poloneses, pois lembro que
terminava com “wsky”. Ela me falou sobre o fato de não ter veneno, que esses
vegetais eram mais saudáveis. Logo lembrei da morte recente de meu avô, que
havia falecido em decorrência de um câncer. Achei um bom argumento.
A razão não é suficiente
para compreender as motivações humanas
O
tal assunto não saia da minha cabeça, apesar de estar convencido que o motivo
apresentado pela dona Terezinha era consistente e suficiente para compreender
racionalmente suas motivações. A inquietação estava na consciência de saber que
a razão não é suficiente para compreender as motivações humanas. Eu tinha essa
intuição e isso me angustiava. Então segui conversando com as pessoas sobre hortas
e seus motivos, sempre que possível, pois eu podia esquecer das inquietações em
alguns momentos, mas bastava uma pequena pausa ou deitar a cabeça no
travesseiro para ser acometido das inquietudes.
Uma
das conversas que mais me marcou foi com a dona Marlene. Ela era diferente. Ela
tinha 65 anos na época. Foi ela quem me falou pela primeira vez em racismo,
quando avaliava uma situação que havia lhe relatado. Ela tinha uma
religiosidade diferente e muito conhecimento, mas era diferente da dona
Terezinha que trazia suas razões de forma clara, em plena sintonia com minha
cultura. Eu descobri que sou descendente de indígenas e fiquei muito curioso em
saber de qual tribo, mas não tinha a menor ideia sobre o assunto. Ela era
descendente de uma família de afro-brasileiros. A dona Marlene sustentava na
parede da sala sua foto de casamento e a foto de seus pais, que era uma foto
que parecia pintada. Eles sempre moraram naquela área do bairro Feitoria Velha.
A conversa sobre a horta com a dona Marlene aconteceu quando eu reclamei de dor
no estômago e ela me ofereceu um chá. Então fomos juntos colher o tal chá e enquanto
passávamos pela trilha entre os canteiros, ela falava sobre a farmácia que
cultivava.
Não aprendi nada, mas
aprendi tudo
Achei
fantástico o conhecimento da dona Marlene. Mas não lembro uma só palavra do que
ela me disse. O que não consigo esquecer e que eternizou sua presença em minha
alma foi o amor ao cultivo da vida. Isso não é possível compreender em sua
plenitude apenas lendo livros. A gente aprende quando faz. É constrangedor não
fazer. Senti essa vergonha quando a dona Marlene disse que nem tudo na vida cabe
no cálculo do dinheiro. E mostrou que, embora ela não tivesse grandes posses
era capaz de fazer sua existência ser geradora de vida. Dessa forma, ela se
afastava da ideia de um vida parasitária ou geradora de morte.
Quem devemos, por justiça
social, enxergar
A
dona Terezinha e a dona Marlene eram pessoas diferentes das demais, pois elas
conseguiam me enxergar e eu me sentia acolhido com a paciência que me
dedicavam. Sua dedicação era um evidente esforço ancorado no amor, que me
deixava comprometido em lhe dar algum retorno, pois tudo que eu desejava era
alimentar essa reciprocidade por toda a eternidade. Lembrei delas recentemente,
pois elas parecem sussurrar em meus ouvidos e minha intuição causa uma grande
angústia diante da tragédia social decorrente do fim do auxílio emergencial,
que vem acompanhado dos impactos da perda de direitos das classes
trabalhadoras, que estarão desamparadas pela decisão política do governo. Não é
possível ficar indiferente ao sofrimento das pessoas, mesmo aquelas que, por algum
vacilo, votaram errado. A questão será: como sobreviver?
O que dá pra fazer?
Ao
compreenderem-se melhor no tecido social, as pessoas tendem a contribuir com a
construção de um sistema organizado para que possam ofertar sua força produtiva
e garantir sua subsistência nos ambientes urbanos. A política é responsável por
isso, mas vivemos um momento péssimo no Brasil. A opção do governo priorizou o
agronegócio, que teve resultados fantásticos, apesar da pandemia. Por outro
lado, fomentou o Sistema Financeiro em detrimento da indústria de
transformação. Como ninguém na vila trabalha em plantação de soja e sim na
indústria de transformação, essa política é responsável pelo desemprego e crise
social. Uma política que deixa o trabalhador com a “Vida na Parede”. Muita
coisa pode ser feita, a começar pela plena compreensão do projeto político que
está sendo ruim para a vida das pessoas. Além disso, é possível decidir por tomar
posturas responsáveis, seja consigo mesmo, seja com a comunidade ou com o meio
ambiente. Se cada um contribuir de alguma forma, a vontade de muitos pode mudar
essa realidade. Eu, pessoalmente, penso em contribuir com algo que preserve o
espírito da dona Marlene e o conhecimento da dona Terezinha, para que mais
pessoas tenham a possibilidade de se relacionar com o hábito do cuidado, pelo
cultivo de plantas medicinais e comestíveis.
Então...
Em
ambientes urbanos, principalmente nos apartamentos populares, o espaço para o
cultivo é algo que pode ser complexo. Nesse sentido, pensamos em organizar um
jardim de cultivo vertical integrado no ambiente, com aproveitamento do espaço
de cada um. Chamei alguns amigos e conversei sobre o assunto. Como resultado
nasceu o programa “A Vida na Parede”, que consiste em viabilizar um jardim
interno com plantas medicinais e comestíveis em apartamentos populares. Quem
sabe a relação com o cultivo e com a prática do cuidado, envolvendo a família
beneficiada, possa contribuir como uma forma de superar as dificuldades vividas
por essas pessoas? A relação com o cultivo da vida associada a ideia de
subsistência, favorece o foco na superação dos problemas comuns e possibilita a
criação de uma rede organizada e autônoma em torno dos temas do projeto “A Vida
Na Parede”. O programa todo deve estar voltado aos trabalhadores que realmente
estão “com a vida na parede”, sofrendo as consequências de um sistema político
excludente, que aprofunda as diferenças sociais em um dos países mais desiguais
do Planeta. Só a experiência decorrente da prática é capaz de gerar esse
conhecimento. Um experimento que tem por objetivo desenvolver novas tecnologias
sociais. Em base é isso.
Quero
agradecer a sua disposição em viabilizar o programa lhe agregando o aspecto
prático, que é fundamental para que seja uma realidade. Com isso, todo o
contexto está aberto ao debate, para que possamos compreender as razões e todas
as motivações possíveis para as melhores decisões políticas.
Um
fraterno abraço,
Charles
Scholl
Ativista
pelos
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