Charles Scholl
As crises
civilizatórias vividas pela humanidade no século XX, marcadas pelo signo do totalitarismo,
produziram experiências traumáticas decorrentes de ataques com armas atômicas e
duas guerras mundiais. Nesse contexto viveu o professor de Filosofia, da
Universidade de Harvard, John Rawls, que contribuiu muito com a ideia de
justiça entre os pensadores contemporâneos. Rawls faleceu em 2002, aos 81 anos,
e foi autor de cinco grandes obras de filosofia, as quais, neste texto,
abordaremos duas delas. O destaque dado
para as obras “Uma Teoria de Justiça” e “Liberalismo Político” são importantes pela
determinação do autor em lidar com a política a partir de uma evidente
perseguição às virtudes. Nesta trajetória, o filósofo nos deixa uma
ressignificação da ideia de justiça, que permeia nossos cotidianos em
contribuições que parecem não defasar, pelo contrário, se mantém atuais pela
sua coerência com as ideias presentes de realização pessoal, social em uma
sociedade multicultural.
Em sua obra “Uma
Teoria de Justiça”, publicada em 1971, Rawls faz uma crítica à ética
utilitarista ao sustentar os princípios universais, que podem ser positivados,
lembrando o posicionamento político dos contratualistas modernos. Nesse sentido, sugere uma ideia de contrato
social, que tem a justiça como principal virtude. A justiça acaba por definir a
força de cada instituição, ao legitimar sua autoridade política. Para favorecer
a ideia presente em sua filosofia política, Rawls utiliza a analogia de uma
“posição original”, que seria um início a partir do todo que se acumulou ao
longo dos tempos. Desta forma, o filósofo não se prende as amarras ideológicas,
que ao longo do século XX produziam grandes centros gravitacionais capazes
raptar as possibilidades da compreensão humana em ideias simples, tal como
ocorreu com o fascismo, com o nazismo e outros regimes totalitários, podendo focar
prioritariamente a ideia de como poderiam nossas ações serem justas nessa
situação hipotética de início da humanidade. Nesse início, os indivíduos
decidem entrar em cooperação social. Em
um único ato, os sujeitos devem produzir os princípios de justiça, porém sem
saberem onde e quem serão beneficiados. Esse desconhecimento sobre causa e
efeito do sujeito sobre a regra, Rawls chama de “véu da ignorância”, que
contribuiria com a ideia de uma justiça para todos, sem saber se teriam
vantagem ou desvantagem perante as regras. Esse olhar tende a seguir o
princípio da equidade, como uma referência clara de ação justa. A partir desta
perspectiva, Rawls defende a justiça como equidade.
Por esse enfoque,
Rawls decanta dois princípios básicos. O primeiro é o da liberdade igual, ou da
igual liberdade, a qual considera o mais importante mantendo suas tradições
liberais. Outro é o da igualdade democrática, que se constitui com o
reconhecimento do princípio da diferença e o princípio da oportunidade justa. Ao
tempo que a sociedade se debruça em garantir a liberdade máxima para cada
indivíduo, tudo deve ser compatível com a liberdade de todos os demais. Com a
ideia de justiça no centro das atenções de Rawls, o filósofo identifica as
virtudes nas estruturas básicas da sociedade, tal como sua constituição
política e seus principais acordos econômicos, pois são esses espaços que
precisam, antes de tudo, sustentar a ideia de justiça. São esses mecanismos que
distribuem direitos e deveres fundamentais, além de determinar a divisão das
vantagens que decorrem da cooperação social. Desse modo, Rawls defende um
contratualismo mais qualificado, que tem como referência a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, que é a síntese das primeiras virtudes universais
positivadas.
Em 1993, John Rawls
publicou uma atualização de sua filosofia política na obra “O liberalismo Político”.
Neste trabalho, a justiça prevalece como a principal virtude perseguida por
Rawls. O filosofo procura evidenciar seu distanciamento das abordagens morais, e
justifica que suas contribuições priorizam o que é justo, não o que é moral,
ético ou bom. Rawls busca apartar sua obra das demais ao contrastar pela ampla capacidade
de produzir entendimentos de consenso entre a pluralidade característica das
comunidades globais. É justamente a ideia de multiplicidade cultural, que
justifica a necessidade de um “consenso sobreposto”, argumenta Rawls. Tomando a
ideia da “esfera pública”, de Jürgen Habermas, o consenso sobreposto seria o
resultado da razão pública de uma comunidade. Nesse espaço, é que se busca
alcançar um entendimento entre os dissensos que resultam da pluralidade
cultural constituidora do tecido social.
O que torna ainda
mais fascinante o trabalho de Rawls é o profundo comprometimento que ele tem
com a produção de um consenso entre diversas partes potencialmente divergentes.
Ao partir da premissa da pluralidade como algo naturalmente presente na
constituição dos tecidos sociais, Rawls consegue territorializar a existência
do indivíduo em um ambiente plural, ressignificando seus elos relacionais,
quando elabora o “consenso sobreposto”. As relações plurais, só são plurais
pelo reconhecimento do conjunto de elementos singulares. A posição de Rawls parece
querer desarticular possibilidades de regimes totalitários, que se caracterizam
pelo uso do poder de forma injusta, cruel e desumana.
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