domingo, 14 de dezembro de 2008

Entre a ilusão e a decepção, um elogio ao bom senso / 2007

“...a personalidade individual (humanitas), manifesta-se pelo modo como o indivíduo se compromete no mundo e com o mundo. Sempre que julgamos as coisas do mundo comum, é algo mais do que as próprias coisas que está implicado nesses juízos; a pessoa que julga revela também uma parte de si mesma, revela a pessoa que é e essa revelação involuntária ganha validade na medida em que se libertou das idiossincrasias puramente individuais.” (Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt).


Os veículos de comunicação possuem uma responsabilidade estratosférica sobre os comportamentos humanos em uma sociedade globalizada. Sua importância pode ser mensurada pela afirmação de que só é possível uma sociedade globalizada a partir da comunicação global. Se dividirmos a percepção que temos do mundo em dois grupos esses seriam compostos pela experiência que vivenciamos e aquela que temos notícia. O mundo midiático se ocupa, basicamente, das informações que são obtidas sem a vivência sobre os fatos. As informações chegam até o sujeito através de veículos de comunicação. A forma e a abordagem sobre cada fato fundamentam as premissas da compreensão que temos da realidade mundial. A exceção dessa regra se limita a viajantes que registram suas experiências a partir da imersão ao meio, vivendo a experiência pessoalmente.



Lógico que antes de sermos seres de uma sociedade que se informa a partir de veículos midiáticos, somos integrantes de núcleos familiares, de um bairro, de uma cidade, de um estado, de um pais e de um Planeta que tem uma vida útil - pelo menos para a humanidade. Ocorre que as informações que edificam os conceitos que temos sobre os grupos sociais em que vivemos são majoritariamente obtidos por meios midiáticos. Com isso, produzimos um sistema que se alimenta de si mesmo, pelo menos na teoria. O resultado prático é que a sociedade de consumo produz infelicidades em todas as fatias da pirâmide social.



A humanidade já está se dando conta disso. Os filósofos de nossa época se ocupam com esses temas atribuindo a pauta um peso existencial à humanidade. A exemplo disso, o francês Gilles Lipovetsky escreveu a obra “A sociedade da decepção” (Ed. Manole, 104 págs. R$ 49), que foi lançada dia 21 de maio, em São Paulo. Gilles acredita que a decepção é uma experiência humana universal desde sempre. Porém, nas sociedades antigas ela era mais restrita. O desejo limitado, a cultura da resignação e um maior apego às práticas religiosas funcionavam como uma anestesia sobre o sistema psíquico dos indivíduos, limitando as dores da decepção. Com isso, o filósofo francês contrasta com os resultados da sociedade moderna que fez explodir o sentimento de decepção. O desequilíbrio das pessoas e a desigualdade social são indústrias produtoras de frustrações. Gilles chama isso de era hipermoderna, que tem como principal característica a intensidade das decepções, que são ofertadas em todos os lugares e níveis sociais. Na opinião de Lipovetsky, a política está entre os temas que geram mais decepção em todos os países do mundo.



A globalização extirpou a esperança revolucionária dos conceitos de Gilles, um militante pós-trotskista. Além da política, a escola lidera a lista das grandes decepções desde os tempos em que parou de ser a garantia de ascensão social. O filósofo não despreza a realidade dos jovens qualificados que trabalham em coisas que não correspondem a sua qualificação. De um modo geral, Gilles acredita que o walfare-state (sociedade de bem-estar), é uma sociedade de frustrações. O suicídio, a depressão, a ansiedade no trabalho e com os filhos são seus principais argumentos. O que torna o pensamento de Gilles mais interessante é a afirmação de que a decepção das pessoas não se dá por conta do consumo de bens materiais. Para ele, a decepção das pessoas não se dá pela impossibilidade de adquirir um Jaguar e sim pelo consumo cultural. Sob esse paradigma, Lipovetsky dispara contra a programação televisiva e justifica sua afirmação com o argumento da prática do zapping, ou melhor, a prática de trocar de canais. Pois a televisão foi feita para ser um espetáculo e o ato de ficar zapeando é a frustração de um espetáculo que não satisfaz. E por fim, Gilles atribui a pior decepção àquela que temos com as pessoas. Para ele, se enganam aqueles que pensam que o consumo é o principal responsável pela infelicidade humana. O que frustra é a individualização do mundo, a relação com os outros e consigo mesmo. É a era do direito do homem e esse sempre será inferior ao desejo, conclui Gilles.



Mesmo diante do quadro caótico anunciado por Gilles, o filósofo francês não pode ser considerado um pessimista, já que a sociedade da decepção não é a da paralisia e tão pouco a da depressão. Ele se anima com as iniciativas das pessoas, com a ampliação das possibilidades de associações, o aumento do número de artistas. “É uma sociedade que relança a vida, que permite um recomeço”, conclui Lipovetsky.



Grande parte dos argumentos que sustentam o modo de pensar de Gilles se fundamentam em sociedades submetidas a existências midiáticas. A mídia produz a decepção cotidiana que sedimenta o solo firme da compreensão de uma sociedade da decepção. A saída para evitar a simples contaminação da neurose coletiva é reservar um espaço de nossas vidas para valorizar a percepção direta que temos sobre o mundo. Olhar com mais atenção nossa família ao invés da telenovela ou do noticiário da TV. É resistir diante de um mundo fantástico ofertado pela mídia e valorizar a realidade sustentada no núcleo familiar e comunitário. É sair da “matrix”. É criar oportunidades de ser feliz com o que se tem, sem perder a capacidade de olhar para frente. É organizar a vida, desde o momento em que acordamos até a hora de descansar. É valorizar sua percepção de bom senso e reconhecer os limites que contrastam com o senso comum. Esses são desafios ofertados aos indivíduos em convívio social cotidianamente. Uma máxima que deve ser respeitada em defesa da sanidade mental dos indivíduos em uma sociedade globalizada.


Charles Scholl é diretor de Comunicação da Prefeitura de Esteio.

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