domingo, 14 de dezembro de 2008

Uma homenagem à Marafiga / 2007

O pôr do sol e o pulsar da compreensão sobre outra dimensão coexistente

O mês de dezembro é marcado por um agir finalizador. É o tempo em que o ambiente está propício às realizações. É o momento em que comemoramos também a finalização da etapa daquilo que não foi possível concluir totalmente. É o nascimento genuíno e o renascer das cinzas para uma nova vida embalada nas chamas da existência. É o presente em que se deslumbra a materialidade daquilo que um dia existia somente em um campo holográfico da cabeça de alguém. E como diz o poeta “sonho que sonhamos juntos vira realidade”.

Sobre os sonhos coletivos, a cidade está em silêncio. É o silêncio dos exaustos da jornada ecoando ao lado do silêncio estratégico propício do momento político. Para as almas mais agitadas da vida pública esse silêncio é ensurdecedor, pois anuncia a grande tempestade que está por vir. É a retração das águas que antecede o tsunami. Em 2008, o calendário eleitoral impulsionará para dentro da realidade de cada família um turbilhão de possibilidades coletivas a serem sonhadas. É saudável rememorar, reler e refazer. Nos permite exercer a condição humana de mudar de idéia, de renovar-se. Nesse embalo, encontramos as infinitas possibilidades e os limites da vida, que sempre fazem questão de se mostrar. De nos deixar sem respostas.

A primeira vez que andei de metrô não paguei passagem. Estava acompanhado da minha amiga Marafiga, parceira que partilhei a aventura de inaugurar uma nova era no transporte metropolitano. Antes do trem urbano era mais difícil circular pela região. A lembrança marcante tomou conta de mim quando recebi a notícia de que os limites da vida tinham se apresentado para aquela grande pessoa. A primeira funcionária do Jornal Eco do Sinos, que se aposentou na empresa. O patrimônio humano construído sobre a perspectiva do olhar de Marafiga criou um denso caldo cultural ao fundir-se com a determinação apaixonada de uma família de agricultores, músicos e escritores. Nessa alquimia, a voracidade da máquina urbana que apressa o tempo e altera a velocidade das vivências, encontra um contencioso de humanidade consolidado pelas relações afetivas.

No mundo do afeto encontramos razão na data, uma convenção humana. Dia 8 de dezembro nasceu Alfaride Alfredo Jorge, que iniciou sua caminhada em São Paulo e concluiu ao lado da diretora do Jornal Eco do Sinos, Maria Inês Scholl Heinz, em Esteio, onde faleceu. Alfaride e Marafiga eram amigos desde sempre e não acredito que a morte tenha colocado um ponto final nessa relação. Seu credo afro-brasileiro enriquecia o caldeirão cultural da família com o saber marcante de um pagé. Pois ele comemoraria seu aniversário com uma oferenda a Oxum, ao por do sol, na beira de um rio. Pois no dia 8 foi o que aconteceu. Atropelado por uma agenda humanamente impossível, de repente o mundo começou a parar. Ao encontrar amigos em Porto Alegre lembrei que a real concepção da existência está na partilha das experiências da vida.

Quando nossos limites são superados pelo agir coletivo. Logo alguém lembrou que tínhamos uma hora vaga no dia e que poderíamos contemplar o por do sol. Sem consciência objetiva do que estava por acontecer defendi a idéia vorazmente. Chegamos a orla do Guaíba primeiro, pois ainda não sabíamos do encontro que estava por vir. Em seguida chegaram as terreiras para a oferenda de Oxum. Junto com elas Alfaride e Marafiga figuraram uma existência e o culto religioso virou uma tela de cinema com silhuetas que imitavam a vida humana. A imitação da existência de Alfaride e Marafiga era possível pelas vivências que compartilhamos. Naquele momento a morte deixou de ser um obstáculo em nossa relação. Influenciado pelo dezembro cheguei a crer em uma existência compartilhada, como se tudo estivesse emaranhado. Desapegado da materialidade produzida pela consciência, me deixei levar pela paisagem e pelo ritual. Rapidamente percebi que tinha passado por um momento de extrema sensibilidade e emoção. Procurei disfarçar perante meus amigos quando eles me olharam, meio sem graça, e perguntaram: “Você também sentiu?”. Um breve sinal com a cabeça evidenciou a disposição para comentar sobre o assunto. Falamos somente sobre o arrepio que o espetáculo da natureza humana sobre a terra é capaz de produzir. Grande lição.
Charles Scholl
falecomcharles@pop.com.br

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